quarta-feira, 29 de março de 2017

Tinha uma boca no meu caminho

Eu estava passando perto de uma boca de fumo, quando um dos caras - parecia o gerente - me reconheceu da internet e me abordou, perguntando o que eu achava do juiz Sérgio Moro. "Tu acha que ele veio pra acabar com a bandalheira?" Escondi meu incômodo com a pergunta e pensei que, se dissesse o que penso dessa triste figura, iria bater de frente com o que ele pensava, pelo brilho nos olhos dele. Era esperança.

Então falei da globo, citei várias falcatruas que vieram a público e toquei num ponto chave, Brizola e os CIEPs. O pai dele havia estudado num CIEP. Largou o crime pra estudar, porque tinha tudo na escola, comida, médico, dentista, futebol, capoeira, música, teatro, era o dia todo lá. Conseguiu passar num vestibular, mesmo trabalhando, quando ele era um bebê ainda, e só não se formou porque foi vítima de um tiro da polícia quando chegava em casa à noite, muitos anos depois de sair do crime. Foi confundido com um traficante conhecido na área, risco cotidiano pra quem mora em favela. Ele estava, na época, com nove anos e chorou quando me contou, "ele tava quase se formando, dizia que ia mudar pro asfalto com a família toda. Não ia pra longe da favela não, que todos os nossos amigos moram aqui. Ele só queria uma casa com quintal, com mais espaço pra todo mundo". Aproveitei essa revelação e lembrei de como a globo atacou a construção do sambódromo, boicotando até o primeiro carnaval lá, do ódio do jornalismo contra os CIEPs, evidenciando o horror que as elites dominantes têm da instrução popular, da fraude eleitoral revelada, com a globo desviando urnas pra impedir a eleição do Brizola, do apoio total ao Moreira Franco, que o sucedeu no governo do Rio e comandou o desmonte do projeto dos CIEPs. E depois, quando o sambódromo bombou, mundialmente, a globo comprou o espetáculo e dominou a área.

À medida que eu falava as coisas que ele sabia, mas não havia conectado, fui vendo a compreensão surgindo a respeito das comunicações criminosas que vigoram nesta sociedade dominada e aí foi só pegar a onda. "Pois é, a globo apresenta esse juiz como a salvação da pátria, como herói... por quê que tu acha que eles elogiam tanto o cara?" A resposta veio rápida, "porque ele fecha com esses furingo". Eu sorri e me despedi, "vou nessa parceiro". "Porra, eu sabia que tinha que falar contigo", ele disse. Eu me senti altamente elogiado. Aí ele me complicou, "então qual é a solução?" Mas eu me vali da intuição que é farta nas periferias e respondi "não tem solução, parceiro, tem caminho, tem serviço, tem a vida pra viver e a gente precisa aprender a ver a realidade sem se deixar levar pela televisão". Ele abriu um enorme sorriso cheio de dentes brancos, "aí tá certo".

Fui embora, ouvindo ainda ele falando com outro, "já viu esse cara falando na internet?"

segunda-feira, 13 de março de 2017

Chuva na noite em Itabuna

Uma vez, em Itabuna, eu viajava sozinho e tinha entrado na cidade pra arrumar um qualquer e seguir viagem, fui dormir na madrugada depois do mangueio nos bares e  nos puteiros da noite. Já tinha arrumado a mixaria pra pegar a estrada, mas resolvi aproveitar o restinho da noite pra dormir um pouco, ainda mais que as nuvens pesadas no céu anunciavam uma daquelas chuvas grossas. Era uma marquise com o degrau da loja largo, onde estendi o papelão e me estendi em cima, cabeça na mochila. Era próximo ao movimento da noite, que varava até dia alto, a presença de gente tornava a dormida mais segura. Ainda esperava o apagar do sono quando começou a chover, primeiro gotas esparsas, então o ritmo aumentava até o toró despencar. Olhei a rua, através do cinza da cortina de água que caía vi tudo vazio, algumas mesas e cadeiras na chuva, em alguns toldos pessoas se encolhiam dos respingos, a maioria havia entrado nas casas e bares. Eu estava abrigado pela marquise, mas a violência da água no chão salpicava gotas sujas, pensei "preciso dormir antes de ficar molhado, depois é mais difícil." Foi quando passou um grupo correndo, alguns protegiam a cabeça, com bolsas e pedaços de papelão, praguejando contra a chuva. Passou como um relâmpago na minha cabeça a necessidade de chuva naquela região, atentei no egoísmo inconsciente e falei comigo mesmo, "os caras tão indo pra casa, onde tem toalha, banho quente e roupa seca... não têm do que reclamar e estão reclamando." Me ajeitei melhor, de costas pros respingos, fechando os olhos e tentando dormir. E sonhei saudade. Não de algum lugar, de alguém ou de alguma situação específica, mas de ter uma casa, qualquer que fosse, mas que tivesse dentro panos secos, um fogão, um banheiro. Uma saudade boa, tranqüila, um sono que me descansou mais do que eu esperava e me pôs em ótimas condições de humor pra pegar a estrada e tratar com as caronas da vida. O molhado da roupa até refrescava no sol que esquentava desde o amanhecer. O céu estava limpo de nuvens. E secou os panos antes da primeira carona, no rumo norte que eu estava.

(Isso foi no início da década de 80)

observar e absorver

Aqui procuramos causar reflexão.