segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Carta a Isnard

Carta escrita a um novo amigo, de 73 anos, lúcido lutador por um mundo melhor. Aí tem um pouco da minha história.


Meu grande irmão (chamo de grande irmão ao mais velho que me inspira respeito, como de irmãozinho ao mais novo que percebo na busca).


A visão que tenho do mundo se deve a uma série de privilégios que o "acaso" me proporcionou. Nasci numa casa abastada, estudei em escolas particulares até o científico - ou segundo grau, ou ensino médio -, entrando, depois, numa universidade pública - caminho convencional burguês de qualificação profissional para a manutenção do patamar social.

Na minha casa era praticamente proibido questionar a situação social, não por adesão consciente aos valores capitalistas, mas pelo exercício dos condicionamentos planejados e implantados pelos reais poderes da sociedade. Desde a infância, diante das perguntas difíceis de responder, tive que ouvir coisas como "ninguém pensa nisso", "essas perguntas não se fazem", "sempre foi assim e sempre será", "não pense nisso, trate de se preparar para garantir o seu futuro", "ninguém pode mudar o mundo", etc, etc, às vezes com impaciência, "de onde esse menino está tirando essas idéias?", "com quem você anda conversando?".

Entrei para o Banco do Brasil, via concurso, em Brasília, com 15 anos, e em 10 meses pedi demissão - a primeira vez que me chamaram de louco -, angustiado pela falta de sentido daquela atividade, além da repulsa pelos valores com os quais estava convivendo, as razões da existência dos colegas, tidos como universais, e pela incompatibilidade pessoal com a ausência de sentido na vida, para mim, embora visse que fazia todo o sentido, para os outros.

Ainda na adolescência, entrei, também via concurso, na Escola Preparatória de Cadetes do Exército (encurtando a história, para não ficar maçante), para alívio da família, que já estava me estranhando. Viram nisso a solução para minha vida, sem perceber que eu estava apenas experimentando, tentando me enquadrar, por causa deles mesmos. Quando saí, no segundo ano, a comoção familiar foi enorme. E, de novo, fui chamado de louco. Não teve uma voz que me apoiasse a decisão.

Com a fibra adquirida nos exercícios militares, viajei de carona, dormi nos matos, nos acostamentos, convivi com pessoas pobres. Depois, fui morar com minha família de novo, terminei o ensino médio e entrei numa faculdade pública. O meu meio social me constrangia. A soberba diante dos serviçais me envergonhava. Eu era tido, em alguns momentos, como um cara "muito estranho". Tentava me aproximar dos porteiros, dos garçons, dos faxineiros, com simpatia e respeito e era muito bem recebido, mas nunca como igual. Eu era apenas um "rico" legal. Tratavam-me bem, mas sem a igualdade com que se tratavam entre si. Reservavam-me as melhores porções, avisavam-me quando estava pra rolar alguma "uca", preveniam-me, ajudavam-me, protegiam-me. Mas não era o que eu queria.

Eu queria igualdade.

Quando peguei a estrada, absolutamente sem dinheiro, pedindo o que comer, dormindo sob marquises, em casas abandonadas, construções, ruínas, puteiros, periferias, tinha como objetivo achar algum sentido na vida, entender essa sociedade, alguma razão pra existência que não fosse me garantir materialmente, possuir, desfrutar, consumir. Perguntava, conversava, aprendia, ouvia histórias, me espantava, me emocionava, me comovia, me revoltava, me admirava, me encantava. Nessa época, vivia entre os mais pobres dos mais pobres, a marginália, os "malucos de estrada". Viajei de cidade em cidade, rodei grande parte do Brasil.

Demorou anos pra ser tratado como igual pelos mais pobres, custou muito esforço e alguns dentes.

No dia em que fui tratado com desprezo por um membro da minha antiga classe - não o conhecia -, eu ri. "Finalmente, perdi o cheiro, o aspecto, o astral da minha origem", foi o que pensei, orgulhoso.

Continuei me sentindo privilegiado, pois tinha informação. Mas já não parecia. Aprendi a viver como mendigo, como pária, como louco, como hippie. Aprendi os códigos dos excluídos. Aí pelo segundo ou terceiro ano de estrada, perdi os documentos, carteira do BB, do exército, de motorista, da universidade, tinha até uma em inglês - aquilo me dava alguma proteção contra a perseguição do estabelecimento social. A polícia passou a ser uma ameaça.

Percebi, aos poucos, como funciona o sistema, aprendizado que não termina, pelo menos no espaço de uma vida. Mas o básico é óbvio. O sistema se baseia em alguns pilares. A ignorância imposta à maioria. O excesso, o desperdício, a ostentação dos que podem consumir. A hierarquia social baseada no consumo e nas posses. O sentimento de inferioridade plantado no coração das maiorias, o de superioridade, no coração dos abastados.

"Como as pessoas podem acreditar em tantos absurdos?", questionava. "Como não enxergam o óbvio?"

Faço uma diferença entre propaganda e publicidade. Publicidade apresenta produtos e estimula o consumo; propaganda forma valores, crenças, objetivos de vida. Publicidade trata do concreto, propaganda, do abstrato. Claro que é uma arbitrariedade minha, mas eu me sinto no direito, não sou acadêmico, nem gostaria de ser. Quero ter os pés no chão e falar a língua da maioria, e não me restringir a essa linguagem hermética da academia, pra pessoas "estudadas", intelectuais. Na minha opinião, é isso o que afasta da população esses revolucionários de auditório, de entidades, tendências e agremiações, que alimentam, secretamente, um tremendo desprezo pela população, "tão ignorante", aderindo à velhíssima prática de culpabilizar as vítimas. Querem conduzir as massas - já horrorizei mais de um, dizendo que minha entidade é Oxóssi, minha tendência é heterossexual (sem preconceito) e que, se eles querem conduzir as massas, deviam ir entregar pizzas.

Concordo que as técnicas de propaganda e publicidade são ferramentas sem vontade própria, e que podem ser utilizadas tanto para libertar como para aprisionar. Mas como é que têm sido utilizadas? Como é que têm sido utilizados todos os conhecimentos guardados nas academias? Todos os recursos materiais do planeta?

Reformulo, graças a você, a frase "a publicidade é uma atividade criminosa", retirando o "é" e substituindo por "tem sido". Em Cuba há um autidór com a colocação "consuma apenas o necessário". É possível imaginar isso no nosso modelo de sociedade?

As necessidades mais importantes são abstratas - afeto, integração, solidariedade, utilidade ao coletivo, compreensão, o trabalho interno (e, basicamente, individual) nas grandes falhas (orgulho, egoísmo, soberba, medo,...), conscientização, desapego, a prática de compartilhar, a cooperatividade, o desenvolvimento do discernimento, senso de justiça e por aí vai. Tudo no sentido da evolução humana, individual e coletiva. Mas o foco da vida foi centrado na matéria, em "benefício" de uma minoria de zero vírgula uns por cento e na abastança de pouco mais de vinte por cento de "qualificados" que os servem. As técnicas de propaganda e publicidade estão na linha de frente, não só nos comerciais, como nos jornais, novelas, filmes, programas de tv, de rádio, nos carros, nos ônibus, nas estações, nas ruas, em toda parte - é um massacre.

Eu não diria que a maioria da população é idiota, imbecil, vazia. Diria que é idiotizada, imbecilizada, esvaziada, infantilizada, via técnicas publicitárias (agora, sim) criminosas, com a ajuda inestimável da sabotagem da educação pública e da interferência na educação privada, por pressão dos que controlam as marionetes políticas. Por que se chama os gastos públicos de "custo social" e não de "investimento na população"? Porque está plantado no inconsciente coletivo que "custo" é algo que precisa ser contido, cortado, diminuído ao máximo. Investimento pressupõe retorno. E, no caso, o retorno seria uma população educada, pensante, crítica, capaz de decidir seus caminhos e de perceber as falácias das elites apresentadas por seu porta-voz, a mídia privada. Tudo o que a classe dos dominantes não quer.

Acredito firmemente que, se cada um consumisse o que lhe fosse realmente necessário, o sistema capitalista ruiria, sem remédio. O socialismo seria implantado por conseqüência, com base no esclarecimento do povo. Não com esses socialistas com o rei na barriga, cheios de verdades imutáveis. Esses são uns imbecis, sabem das coisas mas, ao invés de se darem ao trabalho de esclarecer a maioria, ficam vociferando contra os que "representam" o poder e brigando entre suas tendências de esquerda. Pra falar a língua chula, estou com os bagos cheios desses revolucionários. E faço o que acho que deveria ser feito, a começar pela minha própria vida, seguindo a linha gandhiana de "sermos a mudança que desejamos no mundo".

Como você pode ver, minha tendência é bastante prolixa. Tento condensar, mas tenho dificuldade. Às vezes consigo, como no texto "A Mídia Mente - descaradamente", que está no blog e nas minhas serigrafias - das quais tiro meu sustento. Mas olho pro texto e sinto vontade de desenvolver cada parágrafo, pois cada um me parece um tópico a ser desenvolvido, com toda uma gama de idéias a perfilar. Preciso trabalhar no sentido de desenvolver a capacidade de síntese, você tem razão.

E vou terminando por aqui, pra esboçar alguma coerência com o que acabo de dizer.

Um grande abraço, e obrigado por me ajudar o pensamento.

Eduardo

observar e absorver

Aqui procuramos causar reflexão.