terça-feira, 31 de outubro de 2023

Por quê tanta cumplicidade desse "mundo ocidental" onde somos periferia?

Na Palestina, o massacre continua. Verdadeiro genocídio, mais de três mil crianças entre os vinte mil mortos. A mídia empresarial obedece os poderes econômicos e engana cotidianamente, há muitas e muitas décadas, as populações, distorcendo, mentindo, escondendo, difamando os que tentam trazer a verdade à tona, os que tentam qualquer conscientização das pessoas em geral. A regra é a mesma: manter os povos ignorantizados, desinformados, entorpecidos com entretenimentos que superficializam as mentalidades e com desejos de consumos impossíveis, além de compulsão por consumos possibilitados com sacrifícios a médio e longo prazo, comprometendo os já insuficientes ganhos e salários. Não há teoria ou crença que me faça acreditar que Deus tem alguma coisa a ver com aquilo que acontece nos espremidos “territórios palestinos”, na verdade resistentes a toda a gigantesca pressão pra irem embora. A intenção, clara pra mim, é esvaziar a antiga Palestina – que era inteira quando começou a receber o povo judeu, diga-se de passagem, de braços abertos. Lembro da época do domínio britânico, no princípio do século, quando o império percebeu que poderia perder o controle da área ou ter problemas na sua administração com a quantidade crescente de judeus arribando ao território, e estabeleceu um controle rígido dessa imigração. Uma das leis é reveladora: ameaçava com punições os palestinos que escondessem judeus em suas casas, porões e galpões, que haviam entrado no território clandestinamente. Em 1947 e 48 foi criado, com influência e pela comoção causada na descoberta do genocídio nazista, o Estado de Israel. Bem em cima e com as mesmas fronteiras da Palestina – que hoje alguns deles alegam nunca ter existido. A primeira vez que soube dessa história foi em 82, numa calçada no interior de Minas, expondo artesanato. Meu “vizinho” de exposição era um palestino, no Brasil havia dois anos e casado com uma brasileira. Ele me contou a história da vida dele. Era o mais novo de oito irmãos e morava com a família em algum lugar da Palestina. Os pais haviam plantado oliveiras no terreno – um símbolo de enraizamento, além de produzir azeitonas – e criavam seus filhos, todos homens, com o trabalho na terra árida da região semi-desértica. Lembro que ele se emocionou e interrompeu a fala algumas vezes – sem chorar, ou era um chorar dentro, sem lágrimas. Típico de quem teve que superar muito sofrimento na vida. Primeiro eles cortaram as oliveiras, algumas foram queimadas. Os pais entraram em tristeza, o irmão mais velho entrou pra guerrilha, então com o nome de Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Sumiu no território, pra não envolver a família. Mas o exército descobriu a casa a derrubou, com tratores blindados e a proteção dos fuzis, alegando ser “casa de terrorista”. Em seguida o irmão guerrilheiro foi morto. Dois outros foram pra guerrilha, ficaram cinco “pra cuidar dos pais”. Expulsos de sua casa e de sua terra, eles foram para um campo de refugiados na Jordânia. Com a perda do seu lugar e a morte do filho mais velho, a mãe não resistiu à tristeza, entrou em depressão e morreu em meio às dificuldades dos campos de refugiados. Não demorou muito e o pai também morreu, de tristeza na minha opinião. Aí entraram todos pra OLP, não havia outro sentido na vida pra eles. Uma luta desigual, foram morrendo todos, até que ficaram só três, o meu amigo era o mais novo deles. Não tinham tanques nem aviões, muito menos navios de guerra. Não possuíam tecnologias de radares ou comunicações mais sofisticadas. Um dia ele estava numa barraca com os dois irmãos mais velhos e amanheceu o dia. Os dois dormiam e ele, na tradição do “respeito aos mais velhos”, saiu em silêncio pra não incomodar e foi num riachinho que corria no fundo do vale, lavar a cara e fazer seus procedimentos da manhã. Já se preparava pra subir a encosta quando ouviu um monte de tiros de vários calibres. Escondido numa gruta, esperou – não podia fazer mais nada. Foram mais de meia hora de tiros cerrados, muito tiro, ele me contou com um sorriso triste. Esperou quase a manhã inteira, horas depois dos tiros pararem, pra subir até onde estava a barraca. Os dois irmão estavam mortos, irreconhecíveis, varados como a própria tenda. Não tiveram tempo nem de se levantar. As armas haviam sumido. “Sou o último da linhagem da família”, ele pensou. Talvez – não me lembro, tem muito tempo – ele tenha se sentido na obrigação de se preservar, na preservação da existência de sua própria família. E de onde estava, desceu pro litoral, se escondendo pelo território árido, de pedra em pedra, de moita em moita. Então conseguiu convencer um comandante de navio a levá-lo pra fora dali, explicou a situação e encontrou a solidariedade de um capitão, se não me engano, grego, comandante de um navio que estava no porto. Embarcou “escondido” pelo próprio comandante e veio fazendo pequenos serviços, de porto em porto, até que, no litoral brasileiro, viu semelhanças na vegetação, palmeiras de vários tipos. Movido pela intuição, desembarcou. Era o tempo dos hippies e, logo, ele estava fazendo artesanato pra viver. Assim ficamos amigos por quase um mês, eu admirando o caráter e o senso de justiça dele, no trato cotidiano, a amorosidade com a mulher e o filho, o escrúpulo nas transações feitas, sempre levando em conta o que seria justo. Claro que ele trazia dentro de si o guerrilheiro, que podia se tornar perigoso diante das injustiças tão freqüentes, tão comuns e, às vezes, tão descarada e violentamente impostas no cotidiano da parte de baixo da sociedade. Era a vivência, os valores desenvolvidos na guerra de massacre onde tinha perdido a família inteira. Convivi coisa de um mês com esse cara, aprendi um monte com ele, que me deu material pra reflexão por muitos anos. Aliás, anos depois, já morando na aldeia de Arembepe, eu abrigava um mestre de capoeira amigo na minha casa – ele precisou de alguns meses fora de circulação em Salvador – e ele se fazia “guia” pra gringos – com o papel de segurança incluído – e voltou do Mercado Modelo com um casal de israelenses. Eles tinham passado cinco anos no exército e dado baixa recente, recebendo na saída seis meses de férias. Estavam viajando pelo mundo. Com eles eu soube que ao terminar o ensino médio, todo israelense tinha que fazer o serviço militar – a não ser que tivesse um bom motivo pra não fazer isso. E percebi a impossibilidade de conversar sobre os palestinos. Os israelenses não admitiam nem a palavra palestino, “eles são árabes e querem a destruição de Israel”. Quando tentei contar a história do meu amigo, eles se exaltaram. “Eles mentem! Eles mentem”, gritava a mina, com olhos arregalados e as veias do pescoço saltadas. O cara ficava tão indignado que saía da minha palhoça, rosnando, e ficava lá fora – talvez pra não quebrar a minha cara. E ela desfiava o rosário de sofrimentos do povo judeu, me chamando de ignorante e incapaz, “você não pode entender”, “o que acontece lá é muito mais complicado do que você pode imaginar” e outras dispersões. Eu freava minha curiosidade, sentido que a insistência ia trazer insultos cada vez mais pesados. Não é comum? Quando as pessoas se apegam a “verdades convenientes” e não têm como sustentar essas verdades, partem pra ofensa, você é um isso, um aquilo, um aquilo outro. O próprio sistema de comunicações empresarial, a serviço, evidentemente, dos “grandes interesses econômicos” (leia-se um punhado de podres de ricos), prepara e fornece os insultos, desde “comunista” até “diabólico”. Profissionais de consciência vendida (na melhor das hipóteses, porque a perversidade é outra possibilidade), mas extremamente competentes na sedução, no convencimento, na difamação, na produção de ódios, de valores, desejos... um esquema desumano, pervertido e perverso, construído pra gerar alienação, desinformação, pra conduzir a opinião pública, além de mantê-la na superfície, sem aprofundamento nenhum na observação da realidade e da nossa estrutura social. Os argumentos de apoio ao genocídio do povo palestino, através de massacres que já vêm há mais de setenta anos, são sempre os mesmos. Pra quem procura se informar de verdade – e não das “verdades” que lhe convêm – com algum senso crítico e de observação dos fatos, são argumentos vazios. Nada pode justificar o massacre cotidiano nesses anos todos, muito menos esses períodos de terror, onde edifícios residenciais, escolas, hospitais e qualquer lugar, com o pretexto absurdo de que “eram centro de treinamento de terroristas”. É óbvio que um dos objetivos mais importantes desses procedimentos difíceis até de classificar de tão insanos, perversos, indiferentes a tanto sofrimento causado indistintamente ao povo palestino inteiro, é ter a terra toda, transformada a Palestina em Israel e “sem árabes”. Ou seja, retirando totalmente os palestinos do território que, até 1942, era designado nos mapas como “Palestina”. Seja com expulsões ou com assassinatos. O extermínio do povo não é indesejável pra Israel – basta ver a quantidade de crianças e mulheres, símbolos da continuação de existência de qualquer população, que são alvos de ataques brutais que, depois, são justificados com a afirmação de que era um lugar de treinamento, encontro ou qualquer coisa dos que chamam de “terroristas”, mas que são a resistência a um terror de Estado, cotidiano. A água é controlada e só corre uma vez por semana nas torneiras. A energia elétrica funciona por cinco horas a cada dia – difícil conservar alimentos e alguns medicamentos. A cerca de oito metros de altura e as passagens controladas, ferrenhamente, por militares que odeiam, planejada e induzidamente – desde a infância – os palestinos, tornam a vida um inferno. Os que trabalham, por necessidade, pra israelenses, têm que passar todo dia pelas humilhações dos “pontos de passagem”.
Ontem ouvi um jornalista – evidentemente não da mídia empresarial – contabilizando mais de mil moções de repúdio, condenação e determinações da ONU contra Israel, que nunca respeitou nenhuma delas, mesmo sobre os declarados “crimes de guerra” pela maioria dos países. O que faz pensar... Por quê as maiores potências mundiais apóiam Israel, sem condições nem condenações, com todo o aparato de comunicações atuando pra justificar tudo o que vem à tona e manter escondido o que não vem? Alguns dizem que Israel serve de “cabeça de ponte” pro império anglo-estadunidense – tradicionais ladrões de petróleo pelo mundo todo – mas eu acho pouco. Durante minhas observações e vivências da sociedade, fui me aproximando da percepção de que os verdadeiros maiorais de cada sociedade são os seus banqueiros. Só olhando como os prefeitos fecham com os mais ricos dos seus locais e os servem, o mesmo se aplicando em relação aos governadores, ao presidente, aos deputados e senadores, o poder econômico é prioridade em todo canto e em todos os níveis da estrutura social. O ser humano comum está obviamente em segundo plano. E, entre os ricos mais ricos, não são os banqueiros os maiorais, que guardam, aplicam e põem pra render o dinheiro de todo mundo, inclusive o mundo das multinacionais – do tráfico, das indústrias de armamentos, farmacêuticas, alimentícias, mineradoras e todas as outras? Aí eu volto à pergunta – por quê o apoio incondicional a Israel, independente de todos os crimes gravíssimos cometidos contra o povo palestino? Eu não sei de muita coisa, não. Mas olho com atenção, senso crítico e de justiça, busco as fontes “escondidas” (mas não difíceis de achar, pra quem tá interessado mesmo em saber da realidade, além do que nos é mostrado, que é uma verdadeira farsa. A mídia empresarial foi feita pra manipular a realidade, enganar a gente, atacar os bons e exaltar os maus, invertendo valores e posições). E acabo escapando dos enquadramentos e formando minha própria visão, senão verdadeira, pelo menos mais próxima da realidade do que o jornalismo de consciência comprada – com fortuna, fama e privilégios – permite enxergar. Toda solidariedade ao povo palestino. O massacre está escapando do controle midiático, com a existência da internet, que nem cortando a energia em toda Gaza deixa de denunciar toda a barbárie, a perversidade e o extermínio pretendido desse povo. Estamos em tempos de revelações planetárias, no processo de transição. O ódio, a alienação e o fanatismo são usados à farta pra conter o processo. Pelo que vejo, não adianta e não vai adiantar. O perigo é o que vai ser feito nessa tentativa de contenção pelos dominantes – porque eles detêm poder demais e não vão se conformar “asi, no más”, em perder esse domínio e controle sobre o planeta inteiro. Já vêm perdendo há tempos, mas a arrogância cega e eles não enxergam. Fazem de tudo pra evitar o inevitável e é aí que está o perigo. Estamos num período intenso de um processo de mutação permanente que já vem de incontáveis milênios e que segue através dos tempos, dias, meses, anos e séculos, a caminho dos novos milênios a serem caminhados. Tudo é mudança, todo o tempo. Não há nada que não mude – embora não possamos resolver o ritmo. A única permanência que eu reconheço é a da mudança. Não há como resolver o processo, mas sim escolher como participar dele da forma mais produtiva possível. Viver de acordo com a própria consciência já é uma grande “vitória” nesta nossa sociedade – que nos oferece privilégios em troca das violações, da conivência e da colaboração com toda essa perversidade social que ainda nos assola. Observação - a foto é de algum jornal engajado nos movimentos sociais e foi tirada por volta de 2010, atravessando a avenida Presidente Vargas, em manifestação pró Palestina, como tá na cara.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Celestina, ostentação e retomada dos caminhos

Caricatura - Cláudio

 Celestina, a kombi, tá uma beleza. Alisada e pintada de novo. Antes da pandemia, ela tava toda lenhada, quando chovia muito era preciso parar, tirar tudo e enxugar a água que entrava pelos buracos, pelos encaixes das janelas, por todo lado. Eu gostava daquela aparência, o problema eram as conseqüências, a ferrugem se alastrando, buracos na lataria, a água que entrava a cada chuvarada.

Vários amassados, muitos arranhões e pontos de ferrugem nas janelas e dobradiças, era uma kombi velha, rodada, marcada pelo tempo, mas disposta e valente. Eu gostava do aspecto, simpático e cheio de cicatrizes, Celestina parecia uma senhora guerreira, de uma "velhice" ao mesmo tempo forte, suave e serena.

Lembro de uma vez em que calculei mal a chegada no Rio, gosto muito de viajar na estrada de madrugada, estrada vazia, de chegar amanhecendo o dia. Cheguei pela Linha Vermelha de manhã, quando o trânsito tá aglomerado pra ir da baixada pra centro e zona sul, das periferias mais distantes. Congestionamento, parando de cinco em cinco metros. Escuto um barulho, uma gritaria, uns baques à distância, parecendo longe. Olho pelo retrovisor, vejo um movimento intenso, um monte de moleques assaltando os carros, quebrando vidros com pedaços de vergalhões de ferro, com madeiras, sei lá, uma confusão acontecendo e vindo de trás pra frente, na minha direção. Arrastão. Não tenho o que fazer, não tem pra onde correr, o trânsito tá parado, na altura de Caxias. Estou sozinho na Celestina, a kombi, os vidros estão abertos e eu não faço nada, só espero. Eles vêm chegando, pegam o carro de trás, pegam o do lado, o do outro lado, o da frente. Eu só olhando, janelas abertas, percebo que nenhum deles olha pra mim ou pra kombi. Estão numa função de risco, podem tomar um tiro a qualquer momento, focam nos seus objetivos e não vêem mais nada. A única atenção fora disso é com a possibilidade de aparecer polícia. Nem viram a kombi, com seu aspecto de trabalhadora pobre. Instintivamente, não interessava a nenhum deles. Havia carros muito mais atraentes, bonitões, ostensivos, com aspecto de que tem grana.

A ostentação, tão comum em nossa "cultura social"- e em todas as classes -, me parece fragilidade de ego, insegurança em seu valor pessoal e uma estupidez social. Se pretende "ser respeitado" e se atrai a simpatia dos interesseiros, o olhar de cobiça, a inveja dos frustrados. O valor de cada um está em seu caráter, sua sensibilidade, seu senso de justiça, sua capacidade de compreensão, seu corpo abstrato, sua alma, sua espiritualidade. A transferência de valor pra fora, pra aparência e ostentação, costuma ser um sinal de precariedade interna, de superficialidade mental, de enquadramento nos valores induzidos pelo sistema social, pela própria sociedade. É o domínio da mentalidade "de mercado", induzida pelo modelo de ensino, pelo controle da cultura, das informações, das comunicações - a partir do aparato de administração pública infiltrada, pressionada e controlada pelas forças econômicas de um punhado que se esconde no tal "mercado".

Voltando à Celestina, mais uns dias ela vai me ser entregue. Parada na pandemia, passou quase um ano nessa dermatologia, tratando da "pele", dentro e fora. Depois, é revisar motor e componentes, preparar uma boa produção pra fazer a carga, lotar a viatura e partir pras estradas e pras exposições. Estávamos em cinco adultos e uma criança, em Brasília e partindo Goiás acima, quase na fronteira com Tocantins, quando a pandemia se impôs. A viagem já tinha mais de um mês, Juiz de Fora, Belo Horizonte, Betim, Contagem, depois em Goiás, Rio Verde, Goiânia, Brasília, Alto Paraíso... aí eventos foram desmarcados, em Palmas, em seguida o Ceará fechou fronteiras. Paramos em Cavalcante, norte de Goiás, e ficamos. O motor da kombi tinha sido retificado antes da saída, estava "novo". A covid demorou seis meses pra chegar, foi quando decidimos ir embora, não havia mais por quê ficar. 

Em Belo Horizonte ainda paramos pra regular o motor na Fuscaria do Rafael, especializado em motores a ar, com carburador, das antigas. Chegando em casa e na impossibilidade de expor, fui morar na montanha, no mato. Andar de kombi ali ficava caro, sem mercadoria pra carregar e expor, ela não compensava. Passei pro uninho e deixei ela parada por um tempo, até encontrar o funileiro que ia tapar os buracos, cortar as chapas enferrujadas, soldar novas e o que fosse preciso e terminar fazendo a pintura nova com seu sócio pintor. Quase um ano depois, os olhos se enchem com a novidade da Celestina com um aspecto que ela nunca teve. Pelo menos desde que peguei, abandonada havia anos num depósito em São Gonçalo. O motor foi pro lixo e entrou um novo, original de kombi mesmo.

Não tracei rota pra primeira viagem, mas quero começar nessa região que abrange norte de São Paulo e sul de Minas, em direção oeste com vários "talvezes". Talvez triângulo mineiro, talvez Mato Grosso do Sul, talvez oeste do Paraná, talvez o sul de Goiás, até onde a mercadoria se aproximar da metade. Aí começa o retorno, expondo sempre, mas já na direção leste, a caminho de casa. 

Com o dinheiro ganho na viagem, compra-se matéria-prima farta e começa a produção novamente, gravuras, camisas, fanzines, livrinhos, ímãs... uns dois ou três meses e já dá pra encher Celestina, a cargueira. Aí se estabelece uma nova rota. 








sábado, 29 de julho de 2023

Publicações de hoje no feice

 A mídia empresarial, dominante, compra consciências de jornalistas, comentaristas e "especialistas". Com grana, espaço e fama. Através deles, impõe uma realidade distorcida, sempre a favor de banqueiros e demais podres de ricos nacionais e, sobretudo, internacionais. É a ferramenta mais poderosa pra manter o país subdesenvolvido, de joelhos diante do saque e da exploração desenfreada, exportador de matérias-primas não industrializadas, pra manter a pobreza, a miséria, a ignorância e a desinformação que vejo por aí, em toda parte.

O "mercado de consciências" paga muito bem, não só na mídia, mas em todo tipo de "elite" - judiciária, legislativa, executiva, militar, acadêmica e empresarial.
É preciso humanizar, sensibilizar, esclarecer, conscientizar. Politizando o povo todo, sem confundir com partidarizar e, muito menos, com doutrinar. Sem arrebanhamento nem tutela - se é que me entendem.

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Ignorância e desinformação são o coquetel molotov da democracia de fato. Junte-se a isso ódio e agressividade direcionados pelos poderes econômicos saqueadores e escravistas - que têm sua boca na mídia comercial - e temos... o que tivemos nesses últimos anos, destruindo, isolando e pondo o país de joelhos diante dos tais "mercados" econômico-financeiros internacionais.
Por outro lado, tivemos também revelações da perversidade que existia escondida e se exibiu orgulhosa de si, neste mesmo tempo.
Que não se esqueça.

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Cada escolha é um plantio, cada plantio dá sua colheita. É bom escolher bem o que se planta. E é preciso desconfiar das seduções que reduzem a consciência à conveniência.

domingo, 21 de maio de 2023

Agradar o pobre desagrada o rico, diz Paulo Guedes

Por esses dias foi divulgado um contato entre o ex-presidente e seu ministro da economia, banqueiro e financista, depois do presidente atual conseguir baixar preços que ele não havia conseguido pouco antes da tentativa de reeleição. Reclamou de ter pedido pra baixar o preço do gás de cozinha, numa jogada eleitoral atrás de votos, e ter recebido como resposta “não dá pra agradar o pobre, porque isso desagrada o rico e o rico é quem manda”. Em seguida, irritado pela interpelação do seu ex-chefe – pelo menos em teoria –, completou com “desapega” e bloqueou o ex-presidente.

Essa resposta é uma declaração esclarecedora, pra quem ainda não se deu conta. “Agradar”, no caso, é colocar o Estado a serviço dos que têm seus direitos constitucionais roubados cotidianamente, como alimentação saudável, moradia decente, educação de qualidade, entre muitos outros. Dizendo o mesmo, de outra maneira, fazer a sociedade cumprir a sua constituição, uma obrigação simples e óbvia. Isso “desagrada”, ou sendo mais exato, apavora e enfurece “o rico” – que explora o pobre, saqueia as riquezas do país e acumula terras sem conta, a maior parte improdutiva na intenção da especulação imobiliária, enquanto a parte produtiva resulta em “comodities”, matéria prima para exportação (embora se anunciem produtoras de alimentos pra matar a fome da população, uma grande mentira. Setenta por cento dos alimentos são produzidos por agricultores familiares em pequenas propriedades). Pra esses poucos, manter os pobres humilhados, inferiorizados, sem consciência da realidade, da sua importância e necessidade na produção de tudo o que a sociedade necessita, ignorantes e desinformados, entre a repressão do aparato de segurança e a chantagem da miséria explícita.

A partir dessa compreensão pode-se olhar a história recente do país e entender porquê governos que investiram na população, ainda que insuficientemente, foram odiados, difamados, perseguidos e derrubados – com apoio ou com direção estadunidense, além dos países colonizadores da Europa. No governo de Getúlio Vargas, criaram-se leis que tornavam o ensino obrigatório para todos, que regulavam as remessas de lucros das empresas estrangeiras que saqueavam o território, leis trabalhistas para conter a exploração exagerada de trabalhadores, investiu-se na criação de empresas estatais como Petrobrás, Usiminas, Eletrobrás, Companhia Siderúrgica Nacional, Fábrica Nacional de Motores, enfim, no desenvolvimento econômico em busca de autonomia e soberania nacional. A mídia empresarial, na época tendo à frente os Diários Associados, de Assis Chateaubriand, com jornais impressos e rádios por todo o território, difamava o governo e o presidente, acusava o “mar de lama” da corrupção, afirmava não haver petróleo no Brasil e que tudo era para roubar o dinheiro público. Congresso e judiciário faziam parte da orquestração, em busca de motivos – ou pretextos – pra escândalos ampliados por jornalistas de consciência vendida. A pressão foi tamanha que, na iminência do golpe e num gesto político, Getúlio deu um tiro no peito e se matou.

É de se observar que os conservadores e serviçais de interesses estrangeiros se encolheram diante da fúria popular que se manifestou em toda parte. Jornais foram atacados e “empastelados”, como se dizia na época, jornalistas foram espancados ou fugiram a se esconderem, carros de entrega dessas publicações foram virados, incendiados, máquinas de impressão foram destruídas. O único jornal poupado foi o “Última Hora”, de Samuel Wainer, apoiador de Getúlio, que era amado pelo povo e conhecido como o “pai dos pobres” – e por isso mesmo odiado pelos ricos. Quando o povo se levanta, as elites colonizadas se encolhem com medo.

Outro governo que despertou esse ódio interesseiro foi o de João Goulart, o ex-ministro de Getúlio que deu um aumento histórico de 100% no salário mínimo e implementou medidas para garantir os direitos dos trabalhadores, sendo por isso atacado violentamente de todos os lados e retirado por Getúlio por razões políticas, embora as medidas tenham sido mantidas. O governo de João Goulart investiu na educação, implementou o Plano Nacional de Alfabetização, com o objetivo de erradicar o analfabetismo do território nacional, regulou mais ainda as empresas estrangeiras, sobretudo estadunidenses (que eram a maioria), criou programas de qualificação de professores e, supremo “atrevimento”, decretou a reforma agrária. A mídia empresarial, histérica, berrava contra a “ameaça comunista” e clamava pela derrubada de Jango, como era conhecido.

Na verdade, Goulart era latifundiário de São Borja, RS, como Getúlio, e jamais seria comunista, embora levantasse às quatro da manhã pra ir junto com os seus empregados pros serviços da fazenda, dividindo com eles o chimarrão em franca camaradagem. Ele simplesmente achava que os mais pobres tinham direito a uma vida digna, nada de “comunismo”, apenas humanismo, sensibilidade e solidariedade com a parte mais sacrificada de toda a sociedade, que sofria com a mentalidade ainda escravista das elites descendentes e admiradoras dos antigos “senhores de escravos” dos tempos do império e da colônia.

A frase do banqueiro ex-ministro da economia Paulo Guedes revela a mentalidade das elites dominantes, perversa, anti-social, que permite entender porquê somos obrigados a conviver com pessoas atiradas como lixo pelas ruas, entocadas nas periferias em situações escabrosas de miséria e indigência, gerando mão-de-obra farta, barata e sem direitos, alimentando a criminalidade que cadeias não resolverão, ao contrário, especializam e aumentam a violência e alimentam as organizações criminosas criadas por elementos da própria elite – tudo o que dá lucro, desperta a cobiça.  Condições materiais pra acabar com a desumanidade social há de sobra e há muito tempo. A produção de alimentos e de insumos é mais que capaz de atender a todas as necessidades de todas as pessoas. O que acontece é que não é suficiente pra atender a ambição de alguns poucos – que impõem a ignorância com a sabotagem da educação pública e, com o controle das comunicações, mantêm a desinformação, pra que o povo não tome consciência do que acontece. Da mesma forma, precisam de focos de miséria pra obrigar os trabalhadores a aceitarem qualquer condição de trabalho, abrindo mão dos seus direitos e aceitando qualquer merreca pra não cair nas condições expostas de abandono.

É tempo de revelação, é preciso ler os sinais e perceber os condicionamentos que nos aprisionam a esse modo de vida angustiante, competitivo, vazio de verdadeiro significado, frustrante. É preciso desenvolver a solidariedade e a mentalidade cooperativa, entendendo as induções que nos afastam uns dos outros, que criam competitividade e impedem a união fraterna que poria abaixo toda esta estrutura injusta, covarde e perversa.

Acordamos, pouco a pouco demais pra minha cabeça, mas acordamos, principalmente através das novas gerações – que os dominantes, com seus profissionais de alta capacidade e de consciências compradas (jornalistas, sociólogos, antropólogos, psicólogos, etc.) tentam cooptar sistematicamente. Mas as exceções se multiplicam e a realidade vai se esclarecendo – o tempo não pára.

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Olhar, escutar & perceber práticas de libertação

Papo rolado ontem, com dois mestres de vida - Mônica Silva e Júlio Massaferri. Vale demais, pras mentes férteis. Não adianta muito, pras mentes áridas e empedradas. Essas, só o tempo, a vida e as dores do mundo podem amolecer e fertilizar. Vamos semeando por aí, escolhendo bem onde plantar, quando pessoalmente. Pela internet, não escolhemos, oferecemos a todos e dá proveito quem pode.

domingo, 14 de maio de 2023

Vinte cinco toneladas de alimentos orgânicos

 Hoje foram doadas vinte e cinco toneladas de alimentos, no último dia da Feira da Reforma Agrária, a vinte entidades sociais da Grande São Paulo. Vinte e cinco mil quilos pra distribuir entre os famintos que perambulam pelas ruas ou moram em barracos nas periferias mais pobres. Nada que resolva por mais que um pouco tempo, pra alguns milhares de pessoas. Mas um exemplo e um demonstrativo do que é, na verdade, o MST em nossa sociedade injusta, perversa e covarde. E esse é o motivo pelo qual esse Movimento é tão odiado pelas elites e pela mídia que as representa - e a mais ninguém. Tão difamado e há tanto tempo que é quase senso comum, que vem se desfazendo aos poucos, sobretudo desde a pandemia, quando outras toneladas de alimentos foram doadas nas periferias famintas das cidades, pela solidariedade do MST, entre outras entidades igualmente perseguidas. Uma demonstração da perversidade institucionalizada, a percepção do seqüestro do Estado e suas instituições pelos poderes econômicos de elites diversas, embora compostas de muito pouca gente, em comparação com a população. Todo o aparato estatal e midiático é posto a serviço desses interesses anti-sociais, a quem interessa a fome e o desabrigo, a ignorância e a desinformação, a partir do escuro dos bastidores. Essa gente não tem medo de escuro, porque tira seus privilégios dele; tem medo é de luz, de clareza. Tem pavor da idéia de um povo instruído, esclarecido, com auto-estima e senso crítico pra entender o que acontece e escolher como atuar dentro disso tudo. E esse pavor se transforma em ódio diante de qualquer possibilidade que isso aconteça. Daí o ódio a Paulo Freire e a todos os que pretenderam instruir de verdade, que quiseram investir no desenvolvimento humano individual e coletivo, em alimentação orgânica e saudável, na formação do povo em todo o seu potencial, no atendimento de todas as necessidades de todas as pessoas, sem exceções.

     Foto - Murilo da Silva

Padre Júlio Lancellotti, conhecido em seu trabalho de apoio à população desabrigada em sua paróquia, na Mooca - e também perseguido, difamado e agredido -, recebeu simbolicamente os alimentos, que vieram de assentamentos do MST em vinte e quatro estados do Brasil. Essa solidariedade vem de longe, mas foi sempre escondida, omitida pela mídia empresarial que domina as comunicações no país inteiro. Ao contrário, como porta-voz dos interesses econômicos de punhado de podres de ricos e formadora de opinião "popular" mas, sobretudo, das classes médias, ela difama, calunia, distorce e criminaliza o movimento, enquanto as agências de segurança "pública" infiltram seus agentes de espionagem. 

Quem não conhecer e for a uma feira do MST, sempre de orgânicos, vai se surpreender com as mentalidades, as personalidades, o jeito das pessoas, além dos alimentos saudáveis e variadíssimos, colhidos ou preparados, pimentas, temperos, queijos, geléias, nem dá pra chegar perto de dizer tudo o que tem. Só indo e vendo com os próprios olhos, ouvindo, observando e absorvendo da realidade, do convívio, do contato direto. Ver com os próprios olhos e sentir com o próprio coração acaba levando a gente a pensar com a própria cabeça. Se é que me entendem.

Conheci o MST há muitos anos, em beiras de estrada por onde eu passava, em lonas pretas, plantando as terras mais distantes. Povo simpático, eu não tinha ainda a noção do que era o Movimento nascido em 1984. O que percebi logo é que eram pessoas pobres, mas esclarecidas a respeito da sociedade, com auto-estima e consciência acima da média sobre a realidade. Além de muito solidárias. Várias vezes cheguei e em cinco minutos estava convidado pra um café e alguma coisa pra comer - eles me viam a pé na estrada, carregando minhas coisas e nem perguntavam se eu queria, me viam chegando e cumprimentando, já iam me chamando e oferecendo. Muito tempo depois, já morando no Rio, conheci o escritório do MST na praça Tiradentes, deixei lá um desenho meu, de presente - "por tão poucos terem tanto, é que tantos têm tão pouco". Eu tinha ido com um amigo jornalista, Fabio da Silva Barbosa, para uma entrevista marcada com o Mano Teko, do Santa Marta se bem me lembro. Espero que tenham emoldurado o desenho e posto em alguma parede por lá. Mas não sei, nunca mais voltei. Encontro o MST por aí, vez por outra, e é sempre um prazer, sempre gente boa, sempre bons contatos. Pelo menos até hoje.

Não estou "defendendo" nada, não estou "pregando" nada, tô só relatando e dizendo como vejo e sinto.

sábado, 4 de março de 2023

Cuidado, Sônia

 A ministra dos povos indígenas se encontrou, na embaixada dos Estados Unidos, com o “secretário especial para o meio ambiente”, John Kerry. Diz que ele se interessa pelos povos indígenas e pela proteção da Amazônia. Que está “verdadeiramente preocupado”, tanto com a proteção ambiental quanto com a proteção dos direitos dos povos indígenas.

Cuidado, Sônia. Os Estados Unidos representam o atual colonialismo nascido na Europa, sobretudo o da Grã-Bretanha, de onde são descendentes diretos e que superaram sua matriz, hoje sua aliada na dominação, no saque, na exploração e escravização de todos os lugares onde lançam suas garras, de todos os povos que conseguem, ainda, submeter. Não há sinceridade em suas propostas “humanitárias”. Basta observar seus movimentos pelo mundo, a interferência em governos e parlamentos, nos golpes de estado promovidos ao longo da história, nas mais de cinqüenta guerras provocadas depois da segunda guerra mundial, nos países que se rebelaram ao seu domínio. Um histórico de hipocrisia, de mentiras, de massacres e assassinatos, sob pretextos superficiais e falsos, oferecendo armas, treinamento e dinheiro aos traidores de seus povos, enriquecendo elites locais e formatando mentalidades racistas e preconceituosas contra as maiorias, contra os movimentos de defesa das precárias soberanias dos países ditos pobres – em sua população – mas ricos em recursos minerais, em terras férteis, em água e, sobretudo, petróleo.

Cuidado, Sônia. Estão oferecendo novamente espelhinhos, miçangas e ferramentas de metal, como foi feito com seus ancestrais. Sorrisos falsos e promessas cínicas escondem os mesmos interesses de sempre nas riquezas, agora, da Amazônia. É claro que não vão declarar os bastidores desses “interesses” de multinacionais e mega-bancos mundiais sediados no império corporativo da “civilização ocidental”, esse é seu modo de agir. Como já disse um de seus representantes, um sorriso no rosto, palavras mansas e um grande porrete nas mãos. Lembre-se de que, desde que se descobriu o pré-sal, foi reativada a tal 4ª Frota da marinha estadunidense, desativada desde a grande guerra e re-esboçada durante o golpe de 1964, no apoio aos militares brasileiros diante da possibilidade de resistência. Que só não aconteceu pela decisão do presidente derrubado, um latifundiário acusado mentirosamente de “comunista”, o bicho papão da mídia empresarial e das políticas estadunidenses, na criação da paranóia ignorante e desinformada com o domínio das comunicações e dos modelos de educação engaiolados pelo “mercado”, superficiais e moldados na formação de peças para a engrenagem perversa de uma sociedade escravista, maquiada e travestida como “democracia”, mais uma grande hipocrisia.

Cuidado, Sônia. A sedução dos vampiros mundiais começa com preocupações falsas, tanto quanto os sorrisos e as promessas que escondem – embora se possa ver, quando se leva em conta a história recente – pretendidos saques das riquezas da Amazônia. Os colonizadores genocidas e escravistas europeus hoje estão representados pela democracia de papel dos EUA, pela monarquia que resiste na Grã-Bretanha e, em segundo plano, pelas mega-empresas européias. Existe ainda, em terceiro plano, interesses parecidos vindos da Ásia, insipientes mas “promissores”, se apresentando como “alternativa”. As riquezas latinoamericanas são cobiçadas pelo mundo inteiro, como as da África, que já dá mostras de acordar para esta realidade muito mais que a América Latina, porque lá o saque, a escravização, a produção de miséria e o descaramento no controle das instituições é sem disfarce, descarado e sem pudor.

Cuidado, Sônia. Todos esses sorrisos falsos, promessas mentirosas e preocupações ambientais e humanitárias hipócritas trazem na alma interesses destrutivos e assassinos. Aproveita-se a situação de fragilidade produzida pelos vampiros internos, pra acenar “ajudas” que visam impor vampiros muito maiores, mundiais, “donos” podres de ricos da “civilização ocidental” – a mais violenta de todos os tempos.

Sua foto com esses dois “galalaus” brancos, estadunidenses, sorridentes os três na embaixada dos Estados Unidos – base de todos os golpes de Estado na América Latina –, me pareceu assustadora e deu um frio na barriga. A ministra dos povos originários, de grande importância histórica por ser a primeira vez que as vítimas de genocídio continuado, desde a chegada da nefasta civilização européia, hoje ocidental porque a colônia anglo-saxônica superou o mestre, está se deixando levar pelo canto da sereia, está fechando com os piores inimigos da humanidade. São representantes de forças que não têm amigos, mas sim interesses, que têm na traição uma ferramenta de trabalho, na dominação e no saque, não importando em nada qualquer quantidade de sofrimento e morte que possam produzir.

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Vencer na vida

 Vencer na vida não é enriquecer, mas sim chegar ao fim dessa passagem, que começa no nascimento e termina na morte, de bem com a própria consciência. Vencer na vida é chorar quando se nasce e sorrir quando se morre. A morte não é uma tragédia, uma desgraça, mas sim conseqüência de ter nascido. Tudo que nasce, morre. Nós todos estamos aqui de passagem. É preciso levar isso em conta, diante do massacre publicitário-midiático que faz tudo pra impor nossos objetivos de vida como sendo consumir, desfrutar de prazeres materiais. A matéria é nosso veículo, não nossa finalidade. O tempo é implacável, todos sairemos da dimensão material. Impressionante como as pessoas não se ligam, mesmo vendo todos os antigos indo embora, mesmo percebendo o próprio envelhecimento. Vence quem sai limpo de maldades, de mentiras, vence quem mais beneficiou, vence quem tem facilidade em se desapegar de tudo, matéria e relações, vence quem não se deixou levar pelos valores desse mundo, controlado e dominado por interesses materiais. Chega a ser estúpido se deixar convencer que se vale o que se tem, não pelo caráter, pela amorosidade, pela sensibilidade, pelo senso de justiça. Deus não premia com riquezas, mas com paz de espírito. A verdadeira riqueza é imaterial.

Obs.: Uso a palavra "Deus" pra simplificar o entendimento do que vejo como espiritualidade e não ouso definir. Não tenho alcance pra conceber o "supremo ser do universo", já que, como se sabe, o ser humano não alcança, nem de longe, o próprio universo como um todo. Não nos é possível saber onde são os seus limites, nem se tem limites. Aguardo minha compreensão se desenvolver, sem pretensão de entender ou explicar o que não alcanço. Mas espiritualidade eu sinto plenamente, desde muito cedo, e já comprovei seus efeitos e interferências em minha própria vida.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

O genocídio ianomami e a hipocrisia da mídia empresarial

 A tevê nojenta faz matéria de menos de um minuto sobre a tragédia ianomami. Cita a morte de 570 crianças como quem fala da morte de 570 bois por febre aftosa, uma vez só, de passagem. Diz das providências que estão sendo tomadas pelo novo governo, sem citar o novo governo. Em nenhum momento questiona as causas da tragédia e do aumento escandaloso dos crimes cometidos, desde 2016, mas que aumentou mais ainda depois de 2018.

Eu já vinha acompanhando, por postagens de informativos indígenas - há vários, embora muito pouco vistos pela população em geral - os assassinatos de indígenas, estupros, expulsões, invasões de garimpeiros, madeireiros, criadores de gado e plantadores de soja. Estive pela Amazônia, há mais de trinta anos, e sei que suas terras "demarcadas" ou "em homologação", as terras onde vivem são cercadas por ambições e ódio destrutivo, em todo o território nacional. A difamação e a criação de desprezo - pelas mídias locais - servem como "justificativa" pros crimes cotidianos, os maus tratos e a repulsa por parte de pessoas sabotadas em informação e instrução.

Os ataques nunca pararam, desde a chegada dos europeus, há séculos, mas nos últimos anos esses criminosos tiveram incentivo do próprio governo, que desarmou os poucos esquemas institucionais de defesa desses povos, das florestas, do meio ambiente. O massacre estava liberado, sob o ocultamento da mídia privada (mais privada do que nunca, como depósito de merda) e a exultação da ganância assassina. A mudança de governo pra um menos desumano mostra vontade de conter essa desgraça toda. Mas os elementos que a causam continuam ali, cercando as terras indígenas, babando de ambição e ódio aos que consideram um mero impedimento aos seus objetivos. Esses dias mesmo, no sul da Bahia, dois meninos foram mortos a tiros, quando voltavam pra sua aldeia em área retomada - se não me engano, um tinha 17 e o outro 22 anos. É prática cotidiana desta "civilização" o genocídio indígena - e dos pobres, nas cidades, pelas próprias "forças de segurança" da sociedade. Segurança pra quem?

Que ninguém me pergunte o que fazer. Os povos indígenas sabem muito bem quais seriam as soluções - quem sabe com o Ministério dos Povos Originários e o apoio das pressões internacionais, não apareçam, na prática mecanismos de contenção dessa barbárie secular sobre os originários dessas terras...

É preciso, na minha opinião, tomar consciência da realidade, pra que apareçam caminhos e soluções pros problemas tão gritantes desta sociedade injusta, perversa, covarde - e suicida. E não se conte com os meios de comunicação empresariais, ao contrário, estes têm a função de dispersar a atenção, superficializar as mentalidades, estimular o egoísmo e a indiferença com o sofrimento alheio, omitir as causas das mazelas sociais e distorcer a realidade, apresentando amigos como se fossem inimigos e inimigos como se fossem amigos.

Nojo e repulsa dessa mídia criminosa e seus jornalistas, apresentadores e comentaristas de consciência vendida. Há muitos anos eu afirmo que o mercado de consciências é um dos que melhor paga no "mercado de trabalho".

Todo apoio e solidariedade aos povos indígenas, vítimas preferenciais desta sociedade que agiu, desde que se implantou por aqui, de forma genocida, levando os povos que já estavam aqui quase ao extermínio. Só a resistência, a criatividade e a força de adaptação às situações que se impuseram pôde impedir esse extermínio - e agora estamos em processo de percepção da importâncias desses povos pra impedir a destruição total do meio ambiente e da vida no planeta.

A sociedade dita "civilizada" tem muito a aprender com a gente originária. E isso é urgente urgentíssimo.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Dia 8 de janeiro, domingo, escancara o terrorismo planejado. Covardia "de mercado".

 Vimos ontem o resultado da união da perversidade dos poderes econômicos com a ignorância, a desinformação e as induções ao inconsciente coletivo de ódio pelas mídias empresariais.

O "mercado financeiro" e os podres de ricos não mostram a cara, comandam as "comunicações", convocam os ignorantes de cérebro lavado e enxaguado e contratam os insufladores treinados, pra "liderar" a barbárie.
Fossem os milhões de famintos, esfarrapados, desabrigados e demais sabotados do povo brasileiro a ocupar a esplanada dos ministérios e os palácios dos três poderes - em reivindicações justas dos seus direitos negados há incontáveis gerações - e todas as polícias, mais o exército, a marinha, a aeronáutica cairiam em cima, sem dó, e haveria muitos e muitos mortos, além de presos em número que precisaria ocupar estádios de futebol, pra serem judiados, torturados, "exemplados" por tal "atrevimento". E as exigências seriam mais que justas - comida, moradia, saneamento, sem falar em educação e informação são direitos constitucionais que o Estado não respeita, obrigações que o Estado não cumpre. São crimes e dívidas sociais.
Ontem, esses que se dizem "manifestantes" tinham como "reivindicações" um golpe de Estado, "intervenção militar", entre outros crimes - na inconformação com o resultado de uma eleição. Não teve polícia, nem repressão, até que depredaram os prédios dos três poderes. Aí houve alguma ação e as câmeras mostraram as pessoas saindo algemadas, às centenas, pacificamente e em silêncio.
Ninguém machucado, ninguém gritando, ninguém esperneando. No mínimo, estranho. Não era a índole que essa rapaziada apresentava, entre o ódio e o descontrole desvairado. Que tipo de acerto os deixou tão calminhos?
Aguardem-se os desdobramentos. Não sei se as autoridades serão suficientes pra mobilizar forças de segurança que se demonstram, sem dúvida, favoráveis a essa bagunça toda.
É bom lembrar que interessa aos podres de ricos - escondidos sob a expressão vaga "mercado" - manter pressionado um governo que declara pretender a contenção do saque banqueiro e mega-empresarial e o investimento na população, em alimento, moradia e educação. Assim se pode entender a benevolência com essa turba criminosa, entre profissionais do terrorismo e a massa amorfa e acéfala conduzida, induzida, insuflada pelos meios de comunicação, inclusive e, talvez, principalmente pelas redes sociais da internet.
A proposta é conter as intenções declaradas desse governo. Manter miséria, ignorância, fome, desabrigo - como chantagem sobre a população trabalhadora pra que se aceite qualquer condição de trabalho explorado e sem direitos - pra que se mantenham, também, os privilégios desse punhado de parasitas sociais podres de ricos que se beneficiam desse primitivismo social grosseiro.
A caridade é permitida, comovente na benevolência, porque não resolve. Um programa de Estado que elimine a miséria, o analfabetismo, a ignorância e a desinformação, é proibido como uma "heresia". Não é à toa que o projeto de lei destinado a criar condições pra um "auxílio-fome" foi chamado pela mídia empresarial de "pec da gastança".
Como digo, desde a década de 80, no meu trabalho, o Estado é refém do poder econômico de elites internacionais, com a cumplicidade das elites locais. E o poder econômico é inimigo do povo. É preciso resgatar o chamado "poder público", pra que finalmente ele se torne verdadeiramente público.

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Riqueza e Pobreza

 Riqueza verdadeira a gente carrega dentro. Pode distribuir à vontade, que não diminui.

Pobreza verdadeira é a mesma coisa, tá na alma. E também não diminui, por mais que se distribua.
Essa "riqueza" ou "pobreza" é o que a gente leva da vida e, muitas vezes, o que se deixa também no mundo, por algumas gerações.

Todos temos riquezas e pobrezas. Cabe a cada um cuidar da proporção em si mesmo, nos valores, nas escolhas práticas da vida, na atitude, nas relações pessoais e coletivas, no desenvolvimento da própria consciência.

Essa é a bagagem da alma, na viagem entre as dimensões.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Instituições democráticas não fazem uma democracia de verdade.

 Sim, temos instituições democráticas. Falta construir a democracia - pra além da fachada.

Educação pra além do mercado, humanista, vocacional.

Informação pra além da mídia empresarial, que dá mais importância a interesses econômicos do que à verdade.

Debate político pra além de partidos, no estudo do funcionamento do Estado, do município ao país.

Desde o ensino fundamental até a universidade, desde a Constituição em versão infantil até o debate aprofundado dos seus artigos nos ensinos médio e superior.

Transparência total dos orçamentos, desde a arrecadação de impostos até sua aplicação em cada área da sociedade.

Eliminação do analfabetismo, do desabrigo, da fome e do abandono como prioridade social maior.
Rompimento das correntes dos poderes econômicos, que sequestram a sociedade, através da administração pública, dos legislativos, dos judiciários, e produzem deliberadamente, por pressão, a sabotagem da educação e o controle das comunicações. É preciso investimento total na formação da consciência do povo - de TODO o povo.

"Instituições democráticas" não fazem uma democracia. O que faz uma democracia é consciência social, igualitária e cidadã, espalhada por toda a população. O trabalho é longo e profundo. E começa a partir da mentalidade, dos valores, do comportamento, dos desejos e objetivos, da visão de mundo, de cada indivíduo. A revolução interna precede a revolução social, embora possam ser simultâneas.

Estamos caminhando.

domingo, 27 de novembro de 2022

A vida no Bolsonistão

 

Rodolfo Salm

PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, formou-se em Biologia pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor da Universidade Federal do Pará.


Al­ta­mira se tornou um dos prin­ci­pais cen­tros do Bol­so­nistão. Se Al­ta­mira fosse o Brasil, Bol­so­naro teria ven­cido no pri­meiro turno, quando al­cançou quase 58% dos votos, contra 36,9% de Lula. No mo­mento em que es­crevi este ar­tigo, havia um grupo de ma­ni­fes­tantes acam­pados em frente ao 51º Ba­ta­lhão de In­fan­taria de Selva, que fica no li­mite da ci­dade, pe­dindo uma “in­ter­venção” – leia-se golpe mi­litar. Em frente ao ba­ta­lhão, vá­rias chur­ras­queiras a pleno vapor. A chur­ras­cada foi pro­me­tida para a po­pu­lação caso Bol­so­naro fosse eleito pre­si­dente. Com a der­rota, a carne que falta na mesa de mi­lhares de pes­soas nas pe­ri­fe­rias de Al­ta­mira foi usada para agregar “sim­pa­ti­zantes” em torno do pro­testo gol­pista. Carne, re­fri­ge­rantes e ou­tros gê­neros che­garam em caixas en­vi­adas por co­mer­ci­antes e em­pre­sá­rios lo­cais, o que ajuda a manter viva a re­volta gol­pista contra o re­sul­tado le­gí­timo das urnas.

No dia se­guinte ao se­gundo turno, re­gis­trei o pro­testo em vídeo duas vezes. Achei que es­tava pas­sando des­per­ce­bido. Neste do­mingo, fui mais uma vez. O ce­lular foi to­mado da minha mão. En­quanto eu pro­tes­tava aos gritos, uma roda de ama­re­li­nhos se formou ao meu redor. Tive que ne­go­ciar com um dos lí­deres da di­reita local a de­vo­lução do apa­relho, em troca do com­pro­misso de apagar o vídeo. Ele me disse que, nas oca­siões an­te­ri­ores, havia pes­soas prontas para me agredir. Des­co­briram meu nome e agora me atacam nas redes so­ciais. Fui avi­sado de que cir­cula por What­sApp a men­sagem de um mi­litar do meu bairro que disse ter von­tade de me “dar um tiro”.

Vivo em Al­ta­mira, uma das prin­ci­pais ci­dades do arco do des­ma­ta­mento, na Amazônia, há 14 anos. É a pri­meira vez que estou as­sus­tado, a ponto de me afastar do de­bate po­lí­tico com a so­ci­e­dade local. Vá­rios dos em­pre­sá­rios que fi­nan­ciam as ações gol­pistas en­ri­que­ceram com a gri­lagem de terras, através de fraudes em pro­jetos de de­sen­vol­vi­mento re­gi­onal da di­ta­dura mi­litar-em­pre­sa­rial (1964-1985). Vá­rios deles hoje plei­teiam pe­daços de terra já in­va­didos e des­ma­tados na Terra In­dí­gena Ituna-Itatá, onde há re­gistro de pre­sença de povos iso­lados, a cerca de 100 quilô­me­tros da ci­dade. Quando con­tes­tados, dizem que os in­dí­genas “de­sa­pa­re­ceram”. Claro, ater­ro­ri­zados, com sua terra toda in­va­dida por mi­lí­cias ar­madas, eles se eva­diram para áreas mais re­motas.

Em sua ma­ni­fes­tação em frente ao quartel, os se­gui­dores de Bol­so­naro gri­tavam: “Li­ber­dade, li­ber­dade”. Quem vive na Amazônia sabe que a “li­ber­dade” que de­fendem é a li­ber­dade para in­vadir terras pú­blicas, queimar, des­matar, ga­rimpar, tirar ma­deira. Não é acaso o fato de Al­ta­mira ser a campeã em emis­sões de dió­xido de car­bono do Brasil, à frente in­clu­sive da ci­dade de São Paulo. Há uma cor­re­lação ex­plí­cita entre o arco do des­ma­ta­mento da Amazônia, a área de maior in­ten­si­dade de ati­vi­dades pre­da­tó­rias des­tru­tivas do meio am­bi­ente, e as áreas onde Bol­so­naro teve suas vo­ta­ções mais ex­pres­sivas.

De­sem­bar­quei na ci­dade em 2008, após ser apro­vado no con­curso para uma vaga de ecó­logo na Uni­ver­si­dade Fe­deral do Pará (UFPA). Minha li­gação com a re­gião amazô­nica, porém, co­meçou em 1996, quando ini­ciei meu con­tato com os Kayapó como es­tu­dante de bi­o­logia na Uni­ver­si­dade de São Paulo (USP). Apai­xonei-me pela flo­resta amazô­nica da bacia do Xingu e pela cul­tura com­ba­tiva desse povo. Mas a re­a­li­dade que en­con­trei em Al­ta­mira, anos mais tarde, foi to­tal­mente di­versa: uma ci­dade que odeia a flo­resta, des­preza os in­dí­genas e faz de tudo para re­negar sua origem. Quase não há ár­vores pelas ruas, e as poucas que existem vão sendo ra­pi­da­mente de­le­tadas da pai­sagem ur­bana. Nestes úl­timos anos, fiz do en­torno da casa que cons­truí uma flo­resta, mas tive meu ter­reno in­va­dido re­cen­te­mente por um vi­zinho que en­ve­nenou al­gumas ár­vores que lhe co­briam par­ci­al­mente a vista do rio Xingu. Em vez de pro­testar, fui obri­gado a me con­formar ca­lado, pois se trata de um gri­leiro que cos­tuma re­solver seus pro­blemas à moda an­tiga. Gasto parte subs­tan­cial do meu tempo de tra­balho ten­tando jar­dinar e ar­bo­rizar o campus da UFPA, com frequência em con­flito com aqueles que con­si­deram as ár­vores uma ameaça às es­tru­turas fí­sicas da uni­ver­si­dade.

Quando che­guei, o rio Xingu corria livre e belo em frente à minha casa. Al­ta­mira tinha um ritmo pa­cato, trân­sito tran­quilo e praias de areia branca onde o povo se di­vertia nos fi­nais de se­mana. Isso até a cons­trução da Usina Hi­dre­lé­trica de Belo Monte, que trans­tornou a pai­sagem, com a inun­dação das praias, o apo­dre­ci­mento do rio, a de­gra­dação ur­bana e so­cial e a ex­plosão da vi­o­lência.

A imagem do pre­si­dente Lula de mãos dadas e er­guidas com Tuire Kayapó é, para mim, a sín­tese da cam­panha elei­toral de 2022. Tuire ficou mun­di­al­mente co­nhe­cida em 1989 ao en­costar seu facão no rosto de um di­retor da Ele­tro­norte, José Antônio Lopes, quando ele de­fendia a cons­trução da hi­dre­lé­trica, cha­mada na época de Ka­raraô. Lula, por outro lado, que chegou à pre­si­dência pela pri­meira vez cer­cado por grandes ex­pec­ta­tivas para a con­ser­vação da maior flo­resta tro­pical do pla­neta, de­cep­ci­onou in­dí­genas e ati­vistas am­bi­en­tais ao de­sen­ga­vetar aquele an­tigo pro­jeto da di­ta­dura.

En­quanto o país crescia sob ine­gá­veis avanços so­ciais pro­por­ci­o­nados pelos go­vernos pe­tistas, em Al­ta­mira nós de­nun­ci­amos re­pe­ti­da­mente a in­vi­a­bi­li­dade téc­nica e econô­mica, assim como as ter­rí­veis con­sequên­cias so­ci­o­am­bi­en­tais da­quela que era con­si­de­rada a maior obra do setor elé­trico do Pro­grama de Ace­le­ração do Cres­ci­mento (PAC). Em 2010, fomos re­pri­midos pela Força Na­ci­onal quando ten­tamos pro­testar du­rante a vi­sita do então pre­si­dente Lula à ci­dade, onde de­sem­barcou para de­fender Belo Monte. Iro­ni­ca­mente, na oca­sião, Lula con­fra­ter­nizou com muitos dos que hoje o ca­lu­niam, lu­taram contra sua eleição e cir­cu­lavam pela chur­ras­cada gol­pista di­ante do quartel do Exér­cito. Belo Monte ma­te­ri­a­lizou-se no Xingu, e todas as nossas pi­ores pre­vi­sões se con­fir­maram.

So­mente uma re­vi­ra­volta po­lí­tica tão grande para con­verter os opo­si­tores de Belo Monte em fer­vo­rosos de­fen­sores da eleição de Lula. A forma cri­mi­nosa como o atual go­verno, sob res­pon­sa­bi­li­dade di­reta de Jair Bol­so­naro, agiu di­ante da pan­demia, foi res­pon­sável pela morte de quase 700 mil bra­si­leiros. Perdi dois amigos de Al­ta­mira e do Xingu: o ma­ra­vi­lhoso re­pórter fo­to­grá­fico Lilo Cla­reto, que mo­rava na ci­dade re­tra­tando as vi­o­la­ções am­bi­en­tais e hu­manas cau­sadas pela cons­trução da hi­dre­lé­trica de Belo Monte, e meu irmão na cul­tura Kayapó, o ca­cique Pau­linho Pai­akan, que no final dos anos 1980 foi a mais im­por­tante li­de­rança na luta contra a cons­trução da hi­dre­lé­trica. Bol­so­naro só não foi de­nun­ciado pela CPI da Pan­demia por crime de ge­no­cídio por uma tec­ni­ca­li­dade. Se­gundo al­guns, o ge­no­cídio teria que ser uma ação vol­tada contra grupos ét­nicos es­pe­cí­ficos, en­quanto os crimes de Bol­so­naro na pan­demia te­riam sido contra todo o povo bra­si­leiro. Acei­tando-se tal de­fi­nição, o con­ceito po­deria ser apli­cado ao tra­ta­mento dado por Bol­so­naro es­pe­ci­fi­ca­mente aos povos in­dí­genas.

Bol­so­naro pro­meteu du­rante a cam­panha de 2018 que não de­mar­caria nem um cen­tí­metro mais de terras in­dí­genas, con­tra­ri­ando a de­ter­mi­nação da Cons­ti­tuição de 1988, e cum­priu a pro­messa à risca. Pior que isso, in­cen­tivou o ga­rimpo ilegal nas terras in­dí­genas, tanto em suas falas quanto no des­monte dos ór­gãos de fis­ca­li­zação e no apa­re­lha­mento da Funai. Vá­rias al­deias na Terra In­dí­gena Kayapó, que co­nheço mais pro­fun­da­mente, ce­deram às pres­sões e abriram seus ter­ri­tó­rios para o ga­rimpo. Ou­tras ainda re­sistem. Aukre, a minha al­deia, fun­dada por Pau­linho Pai­akan, aonde re­torno todos os anos para me re­co­nectar com a flo­resta, re­sistiu aos ga­rimpos até aqui. Mas di­fi­cil­mente re­sis­tiria a um novo go­verno Bol­so­naro.

Foi uma cam­panha elei­toral vi­o­lenta, com abusos de poder econô­mico e do uso da má­quina pú­blica por Bol­so­naro. Vi muita gente das classes D e E em Al­ta­mira com medo de ex­pressar sua opção por Lula, an­dando nas ruas, a pé ou de bi­ci­cleta, aten­dendo nas lojas com medo do pa­trão. Mas até nisso Al­ta­mira é de­si­gual. Só por ter um carro, sou con­si­de­rado “rico”. Achei que es­taria me ar­ris­cando ao en­cher meu carro de ade­sivos de Lula. Mas não, tudo o que ouvi foi o apoio de pes­soas que la­men­tavam não poder fazer o mesmo. Por medo.

Quem so­freu por isso foi meu filho ado­les­cente, que ma­tri­culei na­quela que ima­gi­nava ser a me­lhor es­cola da ci­dade. Quando seus co­legas viram os ade­sivos no meu carro, ele passou a so­frer bullying de boa parte deles, fi­lhos de bol­so­na­ristas. Che­garam a cercá-lo di­zendo que, se ele é “es­quer­dista”, não po­deria ter ce­lular. Fico pre­o­cu­pado com uma ju­ven­tude que apoia a des­truição da flo­resta e de­fende um po­lí­tico que enal­tece tor­tu­ra­dores.

Al­ta­mira me faz lem­brar da fa­mosa frase de Ber­tolt Brecht: “A ca­dela do fas­cismo está sempre no cio”. Hoje, em Al­ta­mira e no Brasil, essa ca­dela está ávida e feroz. Apesar do so­luço de alívio re­pre­sen­tado pela vi­tória de Lula, a Amazônia ainda está por um fio.

Rodolfo Salm é professor da Universidade Federal do Pará.

odolfo Salm

PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, formou-se em Biologia pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor da Universidade Federal do Pará.

Pu­bli­cado ori­gi­nal­mente na Re­vista Su­maúma.

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

As "instituições democráticas" estão ameaçadas. Democracia ainda não houve.

 Não estamos tentando salvar "a democracia", mas sim as "instituições democráticas" - o que é muito diferente. A democracia ainda precisa ser construída. No conhecimento, na instrução, na informação verdadeira que são direito da população, sistematicamente negado. (Assim como alimentação e moradia decente, com saneamento, energia e segurança.) As instituições estão não só ameaçadas, mas desmoralizadas, a meu ver. Mais que nunca, porque desde o início dos anos 80 eu desacreditei no aparato estatal, em todas as suas áreas. Percebi as determinações dos poderes econômicos de um punhado de podres de ricos, inclusive no meu pensamento, na minha visão de mundo, nos meus desejos, objetivos e até nos sentimentos. E sacudi tudo fora. Agora olho, espantado e calmo, a reação violenta a um esboço de inclusão social, ao atendimento mínimo de alguns direitos de parte da população roubada em seus direitos constitucionais e excluída dos benefícios do desenvolvimento e da tecnologia. A sabotagem e cooptação da educação pelo "mercado", o controle das informações, a criação deliberada de ignorância, desinformação, superficialidade mental e agressividade competitiva criou o campo pro estímulo ao ódio, ao confronto, ao conflito que estamos vendo em toda parte. A ameaça é séria, assustadora, não só às "instituições democráticas" mas também, e principalmente, na situação social, às condições de vida, em todo o território nacional, da maioria da população - leia-se fome, desabrigo, violência e criminalidade miúda. E, pelo outro lado, da repressão estatal, do aumento da população carcerária, da destruição de vocações e de vidas, alimentando as "empresas" do crime organizado, municipais, estaduais, regionais, nacionais e internacionais.

domingo, 2 de outubro de 2022

Eleições de 22 - ponto de passagem, não de chegada.

 Não estou impregnado desse clima de festa, dessa "alegria da vitória", não me sinto "feliz de novo", não participo de comemorações, nem vejo a luz no fim do túnel. Só estou vendo as trevas espessas que cobriram o aparato estatal se dispersando, pouco a pouco. As revelações foram feitas, a maldade escondida tomou coragem de se mostrar, a perversidade se assumiu perversa, covarde, indiferente a injustiças e sofrimentos alheios. Os cargos públicos nunca se mostraram tão claramente vendidos, movidos a montanhas de dinheiro público, em plena pandemia, em pleno processo de empobrecimento e desemprego, em meio à fome e o desabrigo crescentes. É preciso dar proveito a essas revelações.

O que espero é o restabelecimento das instituições, pra recomeçar a tentar colocá-las no verdadeiro serviço público, no cumprimento da Constituição, no atendimento pleno de todos os direitos da população. Em todo esse período desde 2016, o que se viu foi o desmonte de várias estruturas industriais, de um sem número de programas que atendiam, ainda que mal e pouco, direitos básicos, humanos e constitucionais da maioria historicamente roubada nesses direitos. As instituições foram ocupadas pela bandidagem e foram invertidos os seus procedimentos. Protestar ou denunciar ficou mais perigoso do que sempre foi. A impunidade foi instalada, o incentivo aos crimes, maior que nunca.
Volta à cena o velho teatro de marionetes. Agora mais visíveis as forças econômicas tenebrosas que ainda dominam as câmaras - de vereadores, deputados tanto estaduais quanto federais e senadores -, os governos municipais, estaduais e federal, o judiciário por vias tortas e as comunicações, dominando todas as mídias e capturando a audiência da massa da população, em todas as suas formas. É preciso levar em conta que política não é só partidária. Política é muito mais que isso. Vem de polis, vários, muitos, e trata da existência coletiva buscando harmonia social. Tratar de entender como funciona a estrutura social, como funciona uma prefeitura e suas secretarias, o país e seus ministérios, como são compostos os orçamentos, de onde vêm e como são aplicados, em que setores e por quê, isso é tratar de política. E deveria ser ensinado nas escolas, desde os primeiros anos, adaptados, claro, ao linguajar e à realidade de cada fase do desenvolvimento.

É preciso criar espaços de encontros coletivos, pra falar sobre as necessidades do coletivo, pra resolver problemas e apresentar aos "poderes públicos" o que precisa ser resolvido, ainda que no passo a passo. Conhecer as formas de pressionar o atendimento dos direitos, contar com uma imprensa honesta, que não venda sua consciência - as empresariais priorizam interesses econômicos, não a verdade. É preciso também abrir espaço pras comunicações, geral, desde as comunidades periféricas às escolas, associações, sindicatos, universidades, enfim, detonar o domínio empresarial sobre o espaço das comunicações no país.
 
O controle dos territórios, as decisões finais sobre o que acontece neles devem ser dos que vivem nesses territórios. A sabedoria periférica, de sobrevivência e superação dos que formam o alicerce da sociedade, deve se impor em condições de igualdade aos saberes restritos a poucos e, em  sua maioria induzidos a um sentimento de superioridade ilusório e intencionado na criação de barreiras e afastamento entre o saber e a sabedoria. 

Este é o grande temor da classe dominante, que o saber e a sabedoria se unam na busca de uma sociedade menos injusta, mais igualitária, menos perversa e mais solidária. Pra manter as coisas como são, é preciso ignorância e desinformação, consumismo e alienação, competições e disputas, miséria e exploração. É preciso espalhar o saber, sem restrições e com humildade. E a humildade, por sua vez, é o melhor veículo pra aquisição de sabedoria. 
A necessidade da aproximação requer, do saber, respeito, humildade e disposição de aprender. E da sabedoria, consciência das próprias capacidades, auto-estima e respeito próprio. 

observar e absorver

Aqui procuramos causar reflexão.